Marcadores

3 de setembro de 2014

Mundos Amarelos

   Pelas tranças aramadas da grade que são do tamanho dos meus olhos, vejo três eus, que se misturam ao fundo azul-celeste, da mesma cor da estrela que abrilhanta os dias sem nuvens.
   Reflito sobre o solo que os guarda como uma mãe. Em dias de chuva, o que mais quero é afundar minhas mãos de unhas roídas nessa mãe-fértil e depois, ao tirá-las, cheirar essa fragrância sublime.
   Contemplo também as folhas caídas sob os pés dos meus eus e noto os resultados que o solo fértil e a luminosidade divina causam à vida humana.
   Chego a sentir calafrios de tamanha intensidade causados por essa experiência. Sinto o vento bater nos meus cabelos e percebo que talvez esses eus não sejam tão eus. Penso, então, que devem ser outra coisa... Mas não consigo adivinhar o quê.
   Avalio novamente a imagem que está por trás da grade e...são ipês! Não tenho certeza disso, mas oh, são ipês! O que vejo me engana, pois há elementos desconhecidos nos meus olhos e estes me mostram às vezes o que não é real. Mas, ah! Faz-de-conta que são ipês! Ipês amarelos, por favor.
   Agora tudo está mais nítido... Vejo, no topo da árvore, as belas flores desabrochadas, fontes inesgotáveis de vida. Em cada flor, há um mundo a ser descoberto: palavras que não escrevo, sabores que não degusto, aromas que não sinto, sons que não escuto... Há outros mundos em cada olhar. Há outros mundo em cada ipê.
   




(Fotos do meu professor de ciências, Rodrigo Zavatti)

21 de agosto de 2014

Voz do Vento

   Enquanto subia sozinha aquela rua úmida, pensava sobre o que cozinharia para o almoço. Não queria comer carne novamente...
   De súbito, ouvi uma voz. Uma voz que desconhecia e que tinha um cheiro. Sim! A voz cheirava! E muito bem!
   Olhei para os lados, mas estava completamente sozinha. Sabia que não tomava os remédios há um tempo, porém será que enlouquecera de vez?
   Escutei a voz novamente e estava mais forte. Logo gritei:
   - Quem está ai?
   Ouvi de novo a voz, mas não conseguia distinguir o que ela dizia.
   Parei por um instante, coloquei minhas sacolas no chão e exclamei pedindo:
   - Vamos! Fale comigo!
   E finalmente! Compreendi seus dizeres! A voz perguntava se eu estava bem e respondi-lhe que sim, estava!
   Ela sumiu...
   - Volte! Por favor! - gritei.
   Mas nada.
   Ouvir bem o vento não era tarefa fácil. Sua voz era suave e áspera, ao mesmo tempo. Foi a primeira vez que consegui conversar com o doce filho de Iasã.
   Peguei minhas sacolas do chão e tornei a andar como antes. Como se o vento quisesse concluir apenas, ouvi, de forma abstratamente concreta, a última frase e incorporei sua filosofia a minha vida:
   - A certeza é a pior embriaguez.

24 de julho de 2014

Tic tac

   O leve barulho das folhas encontrando-se com o telhado, os pássaros cantando belamente no quintal e... O maldito relógio! Maldito!
   Após almoçar aquela carne seca, continuei sentado à mesa de madeira, para tentar escrever uma estória. Mas não. Não consegui. O que ouço lá fora mistura-se com o tic tac do relógio, esse maldito.
   Até agora, nada escrevi. Já até me propus a ignorá-lo, mas não posso... Algo em mim diz que tirar a pilha ou jogá-lo no chão não irá tirar o som do tic tac.
   A única coisa que penso é o tic tac. Olho-o a todo momento, pois acho que ele realiza um trabalho curioso: ele comanda o Tempo. Alguns dizem que o Tempo cura, estabiliza a situação... Mas o que é o Tempo, senão um mecanismo manipulado por um instrumento?
   Tenho vontade de abri-lo, penetrá-lo na minha carne, colocando o Tempo em mim para saber o que ele realmente é.
   Já faz duas horas que só o que ouço é o som desse maldito. Creio que daqui um tempo, só o que falarei será a repetição do barulho do relógio.
   O que me assusta é que ele não para para tomar fôlego, nem para tomar um gole d'água. Como algo sem vida comanda tanta coisa?
   - Boa tarde, querido.
   - Tic tac.

15 de julho de 2014

Sentimentos Cardios

Estava bem frio naquela manhã, mas, mesmo assim, optei por sair da cama cedo. Era uma quarta-feira, lembro-me bem. A casa estava vazia e o único barulho era o tic tac atordoante do relógio na cozinha. Levante-me rapidamente e, quando dei por mim, já estava arrumada para sair. Preferi não comer. Melhor não alimentar a ansiedade. Na rua, andava ligeiramente na frente dos vidros dos carros, afim de não me ver. Logo cheguei ao prédio do Dr. García, cardiologista. Sentei-me no sofá duro da sala de espera ao lado de um homem que respirava ofegantemente. Ele, sem tardança, puxou assunto, falando do quanto estava doente, do quanto sentia dores no peito. Perguntou o que eu tinha e respondi-lhe com algumas palavras que não me lembro, mas sei que busquei fugir do verdadeiro. O pior aperto é aquele que não nos damos conta que existe. A respiração falha do homem começara a me irritar. O ar também me faltava, porém era outro ar; um ar interior, que tem a função de espaçar os órgãos. Os meus estavam tão próximos... Queriam fugir aparentemente. A enfermeira chamou-me e corri em direção à sala do médico. Entrei no consultório e ele lançou-me um olhar sarcástico. Simplesmente não o olhei, prestando atenção nos quadros pendurados na parede. Maldito relógio! Então, ele me questionou o porquê de estar ali. Respondi que queria saber de qual lado ficava o coração. - Esquerdo. Agora, diga o que você sente. Dores? - Sim, doutor. - Explique-me mais. - O sr. poderia explicar-me sobre esse órgão? E ele o fez. Ao sair do local, deparei-me com ruas mais quentes. Segui o caminho de volta para casa. Enquanto isso, pensava sobre os dizeres do médico que estudara tanto! Explicou-me tudo. Mas de nada serviu, ouso dizer. Não duvido de sua capacidade, porém minha cabeça não aceita definições tão teóricas, feitas por gente que finge não sentir. Os corações que ele estudara de nada pareciam com o meu. O meu não fica do lado esquerdo. Nem do direito. Nem no centro. Não tem forma. Ele ora flutua, ora rasteja pelo meu corpo. Não podendo pôr as mãos no mundo, guardo fotos tiradas pelos meus olhos. Em meu coração, cabem as normalidades e seus antônimos. Cabe o diferente mas também o igual. Há fadas; e uns monstros de cara feia. O meu coração é a caixa de Pandora.

30 de maio de 2014

Liberdade Assistida

   Era uma vez... Não, não era uma vez. Estou farta da obrigação de um final feliz que há nas histórias que começam assim e que impregnam em nossa cabeça quando crianças, marcando-nos até os fins dos dias. Tenho sérios problemas em distinguir o que é final. Não me interessa também a palavra ''feliz'', pois esta - e outras muitas - buscam inutilmente nomear essas coisas que apertam o peito e que nos instigam a sabermos até onde nossa alma vai. Então, não, não era uma vez.
   Todos os dias vou comprar pão na padaria do Seu Fábio. Até que ele é simpático e vende um pão macio. E sempre, sempre mesmo, vejo um homem que me olha fixamente e tem um andar cambaleante. Acredito que ele fica no bar a noite toda e, pela manhã, perambula pela rua.
    Certo dia - especial, pois chego ao ponto de querer relatá-lo - quando o olhei, senti um calafrio no corpo e ao mesmo tempo uma sensação de não estar no real e deparei-me como telespectadora de mim. Desta forma... Sem vírgula. Sem espaço para pensar no que poderia estar acontecendo. Sem tempo para confirmar minha sensações. Sem vão para respirar.
   Logo voltei ao aparente normal, aquele aceitável. Continuei a andar e logo cheguei à padaria.   Cumprimentei o padeiro e comprei os pães.
   Ao chegar em casa, senti novamente aquela estranheza...
   Houve outras vezes e a cada passagem por este desconhecido mundo, ficava mais aflita.
   Criei diversas hipóteses para descobrir o que e porquê estava sentindo esse aperto que é seguido por uma película, que se passa dentro de mim, cuja protagonista principal sou eu e, simultaneamente, observadora do meu filme.
   Após alguns dias, tomei consciência que é inútil frustar-se por isso, já que meu mundo não está em minhas mãos. Depois de muitas teses, resolvi seguir uma das primeiras que pensei: sentar e me assistir.

28 de maio de 2014

Tentativa de escrever um poema

Venho tentando escrever um poema
Daqueles que deitamos com o rosto úmido
No gélido chão
Venho tentando escrever um poema
Sem rima, sem estrofe
Em vão...
Venho tentando escrever um poema
Que liberte as caladas vozes
Que lhes dê um pouco de som...
Venho tentando escrever um poema
Simples, sem cor nem ilustração
Apenas um poema
Mas, mas...
Minha alma é composta por poesia
Por rimas, por estrofes
Sem chão

Retrato

Lembro-me bem que logo após virar aquela esquina suja, vi-o dançando no meio da rua. Seguia um ritmo caloroso e a melodia que o embalava era a surda canção do vento.
Deu-me a impressão que tinha um bambolê imaginário no corpo e que não podia deixá-lo cair e, por isso, sacudia-se tanto. O meu já caíra há tempos...
Um grupo bobo de adolescentes passou por ele e não faltaram olhares medíocres, insinuando que o bailarino - sim, bailarino - era ridículo.
Ridículo sou eu, homem de 30 anos, com um trabalho desprezível e um bambolê quebrado.
Continuei a olhá-lo e principalmente admirá-lo. Sanidade é inútil.